Manuela Gonzaga

© Marta Gonzaga

Manuela Gonzaga
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"Uma cultura sem passado, como pode estruturar condignamente o seu futuro?"

ENTREVISTA: MARTA LANÇA

 

Que espaços elege para memorializar a colonialidade na grande Lisboa?

 

Desde logo, inscrevê-los-ia na malha urbana da chamada cidade “histórica”, ou antiga, parte da qual desapareceu no Terramoto de 1755. Em todo o caso, a Lisboa ribeirinha, do Castelo à Sé, de Xabregas a Belém, do Rossio a Alfama, sem esquecer o morro de São Paulo que se derrama até ao Cais do Sodré, oferecem uma multiplicidade de espaços dignos de materializar essa colonialidade. E outros espaços muito recentes que se foram agregando, com personalidades específicas a marcar a africanidade que nos une e separa. Como o incontornável Bairro da Cova da Moura, que o trabalho do inesquecível Johnson Semedo agigantou, suscitando ou potencializando a solidariedade intrínseca entre os seus habitantes, e o poder agregador das memórias visuais, olfactivas, culturais e amorosas.

 

Entre eles, que lugar elegeria para inscrever na cidade a relação com a história colonial e africana e porquê. 

 

De repente, o Bairro das Colónias que até já mudou de nome para Bairro das Novas Nações e que é mais recente! Mas também o Conde Barão, muito mais arcaico. Ou o Martim Moniz multicultural, quase guetizante. Acrescentar-lhes Alcântara, Cais do Sodré, por exemplo, e Belém monumental: desde o Padrão dos Descobrimentos ao Mosteiro dos Jerónimos. Neste momento e nesta cidade tão descaracterizada, entregue a multinacionais de marcas identificáveis em todo o mundo, é imperativo que, ao inscrever um projecto destes, ele sirva também para preservar memórias materiais para além das imateriais. Actualmente, a Rua Poço dos Negros está efervescente de vida coletiva, e é um marco histórico multissecular. Insisto: toda a face ribeirinha da cidade foi palco da passagem e do enraizamento de centenas de milhares de escravizados africanos nesta cidade. Onde estão eles? Curioso nunca nos interrogarmos sobre isso. Sabendo que não houve pontes aéreas para essas populações africanas cativas e tão ativas que começaram a chegar em meados do século XV e continuaram a ser transportadas para cá em condições de escravidão ou, mais tarde, de servidão até finais do século XVIII; sabendo-se que não foram exterminadas em massa; nem fugiram por um portal mágico para mágicas dimensões alternativas ou universos paralelos; só podemos deduzir que, a procurar seus vestígios, teremos de descer aos microscópicos segredos do nosso sangue. Aí, vamos seguramente descobrir os seus rastos. Já houve estudos e pesquisas nesse campo, tanto quanto ouvi dizer. Mas não foram levados mais longe. Em todo o caso, é chegada a hora de prestarmos uma digna homenagem a esses nossos antepassados. Sim. Somos o resultado de uma prodigiosa mistura, desde antes do Viriato. Mistura essa que, a partir do século XV, começou a receber o contributo ativo do poderoso sangue africano que, seguramente, corre nas veias de uma boa parte dos portugueses.  



Como seria interessante prestar homenagem à população escravizada que viveu em Lisboa durante tanto tempo? 

 

A fazer as justas e dignas consagrações à população que, durante praticamente quatrocentos anos, foi transportada à força desde África para Portugal, e para muitos outros países, teríamos de conceber modelos que envolvessem os lisboetas, convocados a assistir e, até mesmo, a participar. Naturalmente, destacando as intervenções dos grupos afro e afro-descendentes. Voltando à homenagem. Penso em música. Penso em dança. Penso em entremezes. Em concertos. Na revisitação das festas chamadas Congadas, com a entronização do Rei do Congo em Lisboa, que foram motivo de celebração e alegria, mesmo que roçando o estereótipo que se foi desenvolvendo no sentido de menorizar, quando não desprezar, a identidade africana de raiz. Recordo ainda que eram acompanhadas pelas festas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

Acima de tudo, uma homenagem destas tem absolutamente de ir muito para além do folclore. Tem de revistar os lugares escuros, sombrios, tremendos, da nossa memória comum. Estudá-los a fundo e trazê-los à luz do agora. Penso em colóquios abertos a todos. Em recolha de documentação oral. Em documentários. É um território fascinante e ainda com muito para trabalhar. Desde a arqueologia, à antropologia, à ciência, e à genética. Penso em História a trabalhar, também, o campo esquivo, mas tão fascinante, das estórias. Penso em tanto que já se faz nesse domínio, em Portugal mas também, sobretudo, em países anglo-saxónicos, e na divulgação de tais conhecimentos ao alcance de todos. Em linguagem acessível e estimulante. Redentora na sua verdade.

 

No seu último livro, Aqualtune, aquando da estadia do padre Manuel Roboredo (um clérigo mucongo[1]) em Lisboa, lemos longas descrições  de uma Lisboa africanizada e da grande violência dos espetáculos de Autos da Fé. 

 

A época em que decorre o meu romance inscreve-se em pleno Barroco que, entre outros campos de intervenção, corporizou a revisão da iconografia religiosa proposta pela Igreja, numa promoção do gosto pelo monumental, em contraste com a iconoclástica Igreja Protestante. Motivo? Sobretudo o de impressionar os fiéis através da pompa religiosa, do cerimonial, da opulenta exteriorização do culto. Estes processos e mecanismos ilustram, no seu esplendor, a nova forma católica de doutrinar. Através dos sentidos, através do olhar, articulando-se com o reforço de todas as formas tradicionais da piedade: procissões, incensos, cheiros, música. Entradas triunfais. E arte efémera, teatralizada, que tem o seu auge nos chamados Autos da Fé, que começavam com a proclamação solene  em praça pública das sentenças condenatórias emitidas pelo Tribunal da Inquisição. 

 

Estas cerimónias, extremamente dispendiosas, eram anunciadas com antecedência e revestiam-se de uma grande solenidade. No extremo, ritualizava-se a morte dos hereges que eram entregues, ou relaxados, ao poder secular, e a punição dos que, mantendo a vida, iriam regressando ao seio da Madre Igreja. No meu romance, essas descrições são fornecidas com grande abundância de detalhes ao rei do Kongo, D. Garcia Afonso II, por um cristão-novo que se tornou seu conselheiro desde os tempos em que aquele era duque de Kiowa. Baltazar Simão de Évora havia passado, também ele, por esse tremendo ordálio. Ora, em contraponto à cerimónia impressionante a que todos podiam assistir, os bastidores da Inquisição eram secretíssimos. E continuam a ser muito pouco conhecidos. Este personagem, Manuel Simão de Évora, por exemplo, fora condenado pelo delito de acusar a Santa Inquisição de lhe ter matado o pai, cristão-novo condenado por judaizar às ocultas, e a mãe, cristã velha que não sobreviveu ao desgosto e à vergonha de perder o marido de modo tão infamante. Tudo absolutamente verdade. Mas estas acusações eram consideradas “sacrilégios”, pois denegriam a imagem do Santo Ofício, crime hediondo! Aos 18 anos, este jovem foi um dos condenados do Auto de Fé que decorreu em Évora no ano de 1622. O seu nome não consta da longa lista que nos chegou até hoje, portanto, a sua existência é ficcional. Tudo o resto é verídico. Acima de tudo, trezentos anos de Santo Ofício explicam-nos muito. Estes olvidados segredos corroem-nos a alma. Exorcizemo-los, trazendo-os à luz. No romance, D. Garcia Afonso escutou esta narrativa absolutamente fascinado.   

 

Poderemos considerar Lisboa como o epicentro do negócio do tráfico de escravos nessa época e mesmo posteriormente até à abolição da escravatura?

 

Quando o médico alemão Jerónimo Münzer chegou a Portugal em 1494, o seu espanto foi genuíno, como testemunham os registos do seu Itinerário onde alude à fauna exótica e às gentes de cor que pululavam por todo o país, e a todas as efervescentes novidades que desaguavam no país a bordo e no bojo de navios, galeões e caravelas. A certa altura, detalha: “Há em Lisboa muitíssimos homens e marinheiros que se empregam nesta navegação para a Etiópia e é verdadeiramente extraordinário a quantidade de escravos negros e acobreados que nesta cidade existem. Aqueles que são das cercanias dos trópicos de Câncer e Capricórnio são acobreados, e aqueles que são das regiões equatoriais são negros retintos”.[2] Muitos outros cronistas registarão quadros semelhantes com igual estranheza e maravilhamento. As cortes portuguesas régias são de uma sumptuosidade inusitada, sobretudo a partir de D. Manuel I. É também por esta altura que se verifica uma expansão da utilização do trabalho escravo, no quadro de uma realidade económica onde a sua força é cada vez solicitada.

A partir de então, os pretos passam a integrar, ostensivamente, a paisagem humana da sociedade portuguesa de Norte a Sul, na sua condição de escravizados. Muito resumidamente, no campo o trabalho escravo assume o desbravamento de terras e os serviços de lavoura, enquanto na cidade a sua força braçal é utilizada no serviço doméstico, em atividades artesanais e de ofício, e, também, nas tarefas mais sujas e degradantes. Há milhares de lavadeiras, ensaboadeiras, varinas, descarregadores de barcas, navios e naus, negras de canastra, conhecidas como calhandreiras, encarregadas do serviço público de limpeza das casas e das vias públicas, ou as negras do pote que recolhiam dejetos humanos que iam despejar no mar, na Ribeira. O verdadeiro número de escravos escapa, contudo, à malhas dos recenseamentos. Em todo o caso, a partir sobretudo de meados do século XVI, com a União Ibérica sob a coroa dual do monarca espanhol, o epicentro das navegações e seus comércios é, em grande medida, transferido de Lisboa para Sevilha. Mas já antes, por motivos geoestratégicos, o tráfico Atlântico passara a cumprir um itinerário mais directo: de África, os tumbeiros seguem directamente para o Brasil ou outros destinos do Novo Mundo, com a sua carga humana agrilhoada e amontada nos porões e desembarcada nos lugares onde a demanda é cada vez mais exigente. Pernambuco, Rio de Janeiro, Baía de Todos os Santos, são destinos mais evidentes.

 

Acha que Lisboa convive bem com o seu passado colonial?

 

Lisboa não convive realmente com o seu passado. Se convivesse não destruiria tantos dos seus marcos. Sejam eles árvores, edifícios e outro património edificado. O que é uma tragédia. Uma cultura sem passado, como pode estruturar condignamente o seu futuro?

 

 Para um turista que não saiba nada da nossa história com que impressão ficará? O que se podia fazer para contextualizar melhor?

 

Um turista fica com uma impressão muito vaga, muito ténue, de um passado de "descobertas" e de encontros entre povos, apesar dos tantos desencontros que tudo isso causou, os quais não são documentados em lado nenhum. Ou, quando são apresentados são-no de forma muito pouco explícita. Não é evidente, nem para quem chega nem para quem está, que esta cidade foi palco secular de uma sociedade multicultural. É como se tivéssemos saltado dos romanos (subterrâneos da Baixa e ruínas romanas); para uma ligeiríssima presença islâmica, que, curiosamente, durou muito mais séculos do que a presença romana: oito, na Peninsula Ibérica seis em Portugal, mas que está oculta ou não explícita; e daí, outro salto para a Expansão, que emerge como se concitada por uma varinha de condão e rapidamente desaparece; por fim, desembocamos num Estado Novo de que se tem vindo a apagar todas as memorabiliae (a sede da PIDE em Lisboa transformada em condomínio de luxo, por exemplo). Temos um Museu Etnográfico agonizando junto ao Tejo, e há o Museu de Etnologia, muito estruturado e com programação altamente recomendável, mas pouco visível. Em troca, as novas “catedrais” do consumo marcam a paisagem... como se nada mais importasse. E se alguém se der ao trabalho deprimente de escutar o que guias turísticos vendem aos turistas em espanhol, francês, inglês e outras línguas, as mentiras são tantas, mas tantas, que dá vontade de... é melhor não detalhar.  

 

Notas

  1. ^ Plural: bacongo. No livro utilizo a grafia antiga, para distinguir o “meu” Kongo dos países que emergiram, traçados a regra e esquadro, na Conferência de Berlim que dividiu os “despojos” territoriais africanos pelos países europeus aliados. 
  2. ^ Münzer, Jerónimo (1931), Itinerário, traduzido por Basílio de Vasconcelos com o título de “Itinerário” do Dr. Jerónimo Münzer (Extractos), edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 51