Sociedade de Ajuda a Africanos de 1918

© Foto: Nicole Benewaah Gehle, © Goethe-Institut Portugal

Sociedade de Ajuda a Africanos de 1918

Antirracismo e autoafirmação negra

Gisela Ewe
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A Alemanha perdeu as suas colónias em resultado da derrota na Primeira Guerra Mundial. Quais as consequências que daí advieram, não só para a população como um todo, mas também especificamente para os negros [1] que vivem na Alemanha? Um acontecimento histórico importante neste contexto é a fundação, em 1918, na cidade de Hamburgo, do Afrikanischer Hilfsverein (Sociedade de Ajuda a Africanos). Este artigo traça a história dessa associação.

Já por alturas do início do século XX, os representantes dos países colonizados pela Alemanha empenharam-se na luta pelo reforço dos seus direitos e contra as práticas brutais do regime colonial alemão. Delegações dos Camarões e do Togo deslocaram-se a Berlim para denunciar o domínio colonial alemão e para apresentar petições ao Reichstag, o parlamento do Império Alemão. Em Hamburgo, entre 1905 e 1909, o germano-camaronês Mpundo Akwa causou por diversas vezes sensação ao interpor ações legais por ser vítima de calúnias racistas, revelando-se um espinho na carne das autoridades pró-coloniais.

Novas realidades de vida na República de Weimar

Após a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Versalhes de 1919 reorganizou em certa medida a ordem mundial, levando a que também para os negros na Alemanha as condições de vida mudassem. Anteriormente, embora os direitos reconhecidos aos africanos dos Camarões, do Togo ou da Tanzânia fossem bastante limitados, o facto de integrarem territórios que eram protetorados alemães fazia com que fossem percecionados como pertencendo à Alemanha, sendo por isso tratados como tal pelas autoridades. Após o fim da guerra, muitas dessas pessoas a residir em território alemão viram-se então sujeitos a um estatuto pouco claro ou até mesmo indesejado. Se fossem provenientes dos territórios sob mandato que a Alemanha havia adquirido à França ou à Grã-Bretanha, receberiam a cidadania francesa ou britânica, respetivamente, apesar de até então nada terem tido a ver com esses países ou de nem sequer dominarem a língua. Devido à alteração das circunstâncias, que em princípio evoluíram para pior, os africanos, afro-americanos e alemães negros que, durante a República de Weimar, viviam na Alemanha começaram a organizar-se e a ver-se cada vez mais como "negros", a entender-se como um coletivo.

Os desenvolvimentos globais – que levaram, entre outras coisas, a que, em 1919, tivesse lugar em Paris o primeiro Congresso Pan-Africano – moldaram de igual modo as novas identidades e realidades de vida dos negros na Alemanha. Também em 1919, os negros a viver na Alemanha – incluindo muitos membros da Sociedade de Ajuda a Africanos, liderados por Martin Dibobe, um germano-camaronês que residia em Berlim – dirigiram uma petição à Assembleia Nacional Constituinte da República de Weimar. A manter-se o domínio colonial alemão em África, eles exigiam que houvesse igualdade de direitos e independência para os africanos, tanto nas colónias como na metrópole. [2]

Congresso Pan-Africano 1919

Foi sob a liderança do sociólogo americano W.E.B. Du Bois que, em 1919, teve lugar em Paris o primeiro Congresso Pan-Africano, em que participaram intelectuais, ativistas e veteranos de guerra. O conceito do pan-africanismo tem como propósito a unidade e solidariedade de todos os povos de origem africana e procede das lutas das pessoas negras contra a escravidão, a colonização e o racismo. O tema do congresso foi a situação da África e da diáspora africana nas Américas e na Europa. Esta reunião contou com a presença de 57 delegados, que formularam uma petição dirigida à Conferência de Paz que, precisamente por essa altura, estava a ser realizada em Paris e cujo resultado foi o Tratado de Versalhes. Esse requerimento dos pan-africanistas apoia-se no plano conhecido como "Catorze Pontos" – enunciado por Woodrow Wilson, na altura presidente dos EUA, como base para a paz mundial –, onde se incluía o direito dos povos à autodeterminação. Os delegados exigiam que, tendo como objetivo futuro uma independência completa das potências coloniais, a população africana passasse a participar na governação dos seus próprios países. Contudo, não obtiveram qualquer resposta por parte da Conferência de Paz de Paris. Não obstante, o pan-africanismo é uma das correntes de pensamento que tiveram uma influência fundamental na posterior descolonização de África.
Retrato da família alemã-cameroónica de Mandenga Diek (com a esposa Emilie Diek née Wiedelinski e as filhas Erika e Doris), Leipzig, 1927. © Propriedade privada Detlef e Marion Reiprich / Oguntoye.

A Sociedade de Ajuda a Africanos

A 1 de maio de 1918, ainda antes do fim da Primeira Guerra Mundial, foi fundado em Hamburgo o Afrikanischer Hilfsverein e.V. (Sociedade de Ajuda a Africanos), uma associação de negros que viviam na Alemanha, oriundos na sua maioria – mas não exclusivamente – das antigas colónias alemãs em África. Esta visava o estabelecimento de uma rede de contactos e de assistência mútua em questões da vida prática, para ajudar os africanos que, residindo na Alemanha, tivessem de enfrentar experiências semelhantes, enquanto vítimas não só de racismo como de condições de vida inseguras, sobretudo no tocante ao direito de permanência em território alemão. A maior parte dos membros da associação – que eram pelo menos trinta e dois – vivia em Hamburgo e Berlim, mas parece ter sido possível alargar a rede a pessoas residentes noutras cidades alemãs. A lista de membros inclui endereços em Tussenhausen (na Baviera), em Zoppot, Breslau e Marggrabowa (na atual Polónia), em Colónia, Herne e Dülmen (na Renânia do Norte-Vestefália), bem como em Potsdam e Rostock. [3]

De acordo com os estatutos, a Sociedade de Ajuda a Africanos via-se explicitamente como uma entidade apolítica, devendo funcionar antes como uma rede de apoio mútuo e de solidariedade com o objetivo de "criar uma estrutura central a que possam recorrer todos os africanos que vivem na Alemanha, prestando-lhes assim um apoio que, tanto quanto possível, substitua a comunidade tribal e a família da respetiva pátria". [4] Os registos oficiais da associação mencionam o endereço de uma empresa de importação e exportação, pertencente ao germano-camaronês Peter Makembe, com sede no número 113 de Dammtorwall, uma rua de Hamburgo. As reuniões tinham lugar no apartamento em que Makembe residia, mesmo ao lado. [5] Através da associação, os membros fundadores pretendiam conceder assistência em casos de doença ou de morte, bem como organizar um modo de se manterem mutuamente informados acerca de oportunidades de emprego.

Os objetivos expressos pela associação revelam os problemas com que os seus membros tiveram de se debater, nos tempos da República de Weimar. Para além da falta de oportunidades de trabalho e de medidas de proteção social, era igualmente difícil manter o contacto com a família e amigos nos respetivos países africanos de origem, razão pela qual a associação também pretendia servir de "agência noticiosa, através da qual os familiares em África possam sempre saber do paradeiro dos familiares que vivem aqui na Alemanha". [6] De acordo com o parágrafo 10, a associação deverá "atuar no âmbito da proteção jurídica dos seus membros e, após um exame consciencioso da situação, apoiar com aconselhamento e ajuda prática os seus congéneres, que muitas vezes não estão familiarizados com a língua nem com a lei" [7]; esta formulação revela que os membros da Sociedade de Ajuda a Africanos, em especial nas relações que mantinham com instituições estatais, com empregadores ou com senhorios, corriam o risco de vir a ser discriminados ou até mesmo tratados de forma ilegal. O facto de a associação se apresentar como um coletivo de "africanos" ou mesmo de "congéneres" pode ser entendido como uma constatação das experiências partilhadas que naquela altura os negros tinham na Alemanha, vivências essas que os levaram a organizarem-se daquele modo.

Uma destas experiências negativas é especificamente mencionada nos estatutos da associação; de acordo com o parágrafo 11, o último desse documento, a Sociedade de Ajuda a Africanos deverá, para além do mais, servir para "nos aliviar da sensação de isolamento no meio da população branca". [8] De resto, "qualquer pessoa de cor e que pertença à nossa raça negra" [9] podia tornar-se membro. A identificação como um coletivo negro que teve de se organizar e afirmar numa sociedade dominada por brancos aponta, desde logo, numa direção que se situa para lá da apresentação oficial como uma associação completamente apolítica; pode mesmo ser entendida no âmbito do surgimento global do pan-africanismo e dos movimentos anticoloniais – em concreto, dos movimentos de libertação posteriores.

Protesto contra a instigação racista

Após o fim da guerra, o facto de o exército francês empregar soldados africanos nas tropas que mantinha estacionadas na Renânia teve como resultado uma campanha propagandística de teor racista, sem precedentes e com abrangência nacional, que visou os soldados negros e se tornou conhecida sob a designação «Schwarze Schmach am Rhein» (Ignomínia negra nas margens do Reno). Inúmeras mentiras e representações racistas foram vertidas em palavras e imagens, sendo divulgadas não apenas por toda a Alemanha, mas também a nível internacional. Esta campanha de instigação acabou por também surtir efeitos sobre os negros que viviam noutras partes da Alemanha, conduzindo a uma hostilidade generalizada, a insultos e agressões físicas. Foi nos seguintes termos que, em 1921, Louis Brody, em nome da Sociedade de Ajuda a Africanos, protestou publicamente contra esta campanha e as suas consequências no jornal Berliner Zeitung am Mittag: "Gostaríamos também de mencionar com particular ênfase que não somos a raça imoral e inculta pela qual presentemente e de modo generalizado nos tomam na Alemanha. [...] Os negros que vivem em Berlim e em zonas não ocupadas da Alemanha provêm das antigas colónias alemãs [...]. Pedimos, por isso, aos alemães que mostrem alguma consideração e não fomentem constantemente o ódio contra eles através de relatos sobre a "ignomínia negra"." [10]

A Sociedade de Ajuda a Africanos existiu durante alguns anos e revelou-se de grande benefício prático para cada um dos seus membros. Contudo, as condições de vida dos negros foram-se constantemente deteriorando ao longo da década de 1920 e muitos dos membros da associação estavam tão preocupados com os seus próprios problemas que a atividade associativa se tornou bem mais escassa. Devido à insuficiência das fontes documentais, é difícil reconstituir o que terão sido os últimos anos da Sociedade de Ajuda a Africanos. Entre 1924 e 1925, o mais tardar, a associação terá deixado de existir. [11]

Embora só de uma forma bastante limitada a Sociedade de Ajuda a Africanos tenha conseguido alcançar os objetivos a que se propôs, não deixa ainda assim de representar um exemplo precoce da auto-organização da população negra em Hamburgo e na Alemanha, com vista a promover a resistência. O racismo continua até aos nossos dias a constituir um problema na sociedade alemã; nos últimos anos, a questão adquiriu ainda maior visibilidade, em boa parte devido aos protestos de refugiados ou em resultado do fôlego ganho pelo movimento internacional Black Lives Matter. Também em Hamburgo, grupos como o "Lampedusa em Hamburgo" têm oferecido resistência à privação de direitos de que algumas pessoas são vítimas. O grupo é composto por cerca de 300 pessoas que fugiram da Guerra Civil da Líbia para a Europa, tendo passado pela Itália e chegado à Alemanha. Embora outros movimentos de resistência negra sejam exemplos mais conhecidos – é o caso do movimento dos direitos civis nos EUA, ocorrido nas décadas de 1950 e 1960, ou dos movimentos de libertação em África e na Ásia –, não deixa de ser verdade que também na Alemanha e na cidade de Hamburgo existe uma longa história de resistência anticolonial e antirracista por parte de pessoas negras, fenómeno que é também merecedor de maior visibilidade, que deve ser recordado e celebrado.

Março de 2021

Tradução: Paulo Rêgo


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Notas

[1] Emprego aqui os termos "branco" e "negro" não enquanto descrições da cor da pele, mas enquanto termos com conotação política e, por isso, com valor estratégico, termos que deverão tornar possível a descrição das estruturas de poder e posições sociais numa sociedade marcada pelo racismo. Trata-se de constructos que se mantêm operantes na realidade social, e é isso que se pretende deixar claro através da opção pelo uso do itálico e do bold.
Mediante uma utilização empoderadora do termo "negro", essa palavra adquire – ao contrário do termo "branco" – um potencial de resistência que deverá ser tornado visível através da diferença no modo como ambas as palavras se encontram escritas.

[2] Petições de Martin Dibobe e outros junto da Autoridade Colonial (Kolonialamt) e da Assembleia Nacional Constituinte (1919). Arquivo Federal (BArch) R1001 7220, Bl. 130-1, 231

[3] Arquivo Estatal de Hamburgo 331-3 SA2819

[4] Ibid.

[5] Cf. Robbie Aitken e Eve Rosenhaft: Black Germany. The Making and Unmaking of a Diaspora Community 1884-1960 [Alemanha negra. A construção e destruição de uma comunidade na diáspora entre 1884 e 1960], Cambridge, 2013, pág. 130

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Ibid.

[10] Apelo do Afrikanerbund (Liga dos Africanos) [nome pelo qual a Sociedade de Ajuda a Africanos é referida] à opinião pública alemã, publicado no jornal Berliner Zeitung am Mittag, 44/188, de 24/05/1921

[11] Cf. Peter Martin e Christine Alonzo: Im Netz der Moderne. Afrikaner und Deutschlands gebrochener Aufstieg zur Macht [Na rede da modernidade. Os africanos e a acidentada ascensão da Alemanha ao poder], Hamburgo, 2012, pág. 202

Última edição em: 19/04/2024 14:35:14