Baakenhafen

© Nicole Benewaah Gehle 2021

Baakenhafen

A “Porta para África” no porto de Hamburgo

Jan Kawlath
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No que diz respeito a lugares da memória (pós-)colonial, Baakenhafen é um sítio pouco conhecido, ainda que se revista de uma importância central no papel que Hamburgo desempenhou no genocídio dos povos Ovaherero e Nama. Por aí passaram milhares de soldados alemães brancos, honrados tanto com despedidas como com receções festivas, quando eram enviados para lutar pelos interesses coloniais alemães ou quando regressavam dos territórios ultramarinos. Além disso, durante cerca de uma centena de anos, também aqui se concentraram os fluxos do comércio de Hamburgo com os países africanos.

Um hub comercial do sistema económico colonial

O Cais portuário de Baakenhafen representa um lugar de memória (pós-)colonial a dois níveis: por um lado, foi utilizado como ponto de interseção comercial num sistema económico mundial baseado no colonialismo; por outro, funcionou como lugar de encenação do poder colonial. Ambos os níveis estão interligados, uma vez que as companhias de navegação que constituíam a marinha mercante também realizaram o transporte das tropas coloniais.

As origens do cais portuário de Baakenhafen e de vastas porções do Porto de Hamburgo estão relacionadas com o âmbito colonial das redes de ligações comerciais da economia hamburguesa. Em meados do século XIX, tornou -se indispensável uma reestruturação fundamental de toda a economia portuária em Hamburgo, a fim de acompanhar a rápida mudança na economia mundial. O sistema económico global foi influenciado de modo direto pelo colonialismo até meados do século XX e o tecido económico hamburguês fazia, também, claramente parte de todo esse sistema.

SISTEMA ECONÓMICO MUNDIAL NO SÉCULO XX

Matérias-primas como o cauchu, o açúcar, o café, o óleo de palma e o cacau, entre outras, foram importadas de diferentes territórios do império colonial — diretamente ou através de estações intermédias — até chegarem a Hamburgo, onde uma grande variedade de empresas industriais as processou. Muitas eram também as casas comerciais de Hamburgo que possuíam as suas próprias plantações ou operações mineiras, das quais obtinham as matérias-primas; procediam, em simultâneo, à exportação a partir de Hamburgo de mercadorias industriais agranel e de bebidas espirituosas, sobretudo para as regiões coloniais: https://shmh.de/postkolonial/grenzenlos.
Este sistema económico baseava-se na exploração dos povos dessas regiões localizadas no hemisfério sul, que viviam sob uma tirania colonial caraterizada pelo racismo, a escravatura e a pobreza, enquanto em Hamburgo as empresas tratavam de arrecadar os lucros. Para mais leituras a propósito destes aspetos da história industrial e económica de Hamburgo, que regra geral não são mencionados, veja-se a página “Hamburgs koloniale Industrie" [A indústria colonial de Hamburgo], da autoria de Sandra Schiirmann e Stefan Rahner.

Para o Porto de Hamburgo, os números revelaram bater certo: as novas bacias portuárias e a construção do enorme complexo de armazéns da Speicherstadt transformaram o porto desta cidade num dos mais modernos e mais rápidos de todo o mundo. A indústria e as empresas comerciais relacionadas com o porto prosperaram rapidamente e trouxeram muito dinheiro para a cidade hanseática.

Pormenor do mapa "O Porto de Hamburgo", Hamburgo, 1912. Fonte: © Biblioteca Estatal e Universitária de Hamburgo

Foi na margem sul de Baakenhafen, num cais chamado Petersenkai, que se concentraram as companhias de navegação de Hamburgo que operavam linhas marítimas em todo o continente africano. Depois de a Hamburg-Amerika Linie (que atualmente integra a Hapag-Lloyd AG) ter arrendado o cais durante os primeiros 10 anos, a partir de janeiro de 1904 as estruturas aí existentes passaram a estar ao serviço da Woermann-Linie e da Deutsche Ostafrika-Linie, juntamente com a Deutsche Levante-Linie. Com estas empresas de navegação teve início a história do cais portuário de Baakenhafen enquanto “Porta para África” em Hamburgo e centro do comércio marítimo com os países africanos. Foi, de resto, uma situação que se manteve até 1999, quando a exploração económica desta parte da bacia portuária foi abandonada para dar lugar à construção da HafenCity.

CONSTRUÇÃO da HafenCity

A “Woermann-Linie” foi a maior companhia marítima privada do mundo até ser suplantada pela “Hamburg-Amerika Linie” na década de 1910. Na década de 1940, a “Woermann-Linie” e a “Deutsche Ostafrika-Linie” foram integradas na “Deutsche Afrika-Linien”, uma companhia de navegação detida por John T. Essberger, um armador de Hamburgo. Esta última empresa ainda hoje existe, mantém a sua designação e tem a sua sede nesta cidade, em Altona. Durante os bombardeamentos aliados que Hamburgo sofreu durante a Segunda Guerra Mundial, os armazéns existentes em Baakenhafen foram em grande parte destruídos e só mais tarde, nas décadas de 1950 e 1960, vieram a ser reconstruídos. Entre 1969 e 1971 o cais conhecido como Petersenkai foi convertido no chamado “Afrika-Terminal” e por ele passou uma grande variedade de mercadorias. Com efeito, os navios da “Deutsche Afrika-Linien” transportaram uma grande parte dos bens transacionados entre a República Federal da Alemanha e os estados da África Austral em que vigorava o apartheid — Namíbia e África do Sul. O transbordo desses bens ocorreu no “Afrika-Terminal”. Em 1985, a empresa de logística “Buss Group” assumiu a exploração do terminal, tendo continuado a operá-lo até por volta de 1999 como um centro de transbordo de mercadorias, no âmbito do comércio marítimo com países africanos. Com o início dos trabalhos de construção do projeto HafenCity deixou de existir qualquer utilização de Baakenhafen enquanto instalação portuária.
A respeito do comércio com países africanos em Hamburgo, recomenda-se como leitura adicional dois artigos do historiador Heiko Möhle: “Paläste des Wohlbefindens – Hütten der Armut” [Palácios do Bem-Estar – Cabanas de Pobreza] e ainda “Gute Geschäfte mit Rassisten” [Bons Negócios com Racistas], ambos incluídos na antologia Branntwein, Bibeln und Bananen [Brandy, Bíblias e Bananas], que ele próprio organizou.

Antigo armazém de cacau, no Edifício 29 de Baakenhafen. Fotografia: © Jan Kawlath 2017

Transporte de soldados coloniais brancos

Não só as mercadorias vindas das colónias passaram por Baakenhafen: a bordo dos navios viajavam também colonos, comerciantes e funcionários coloniais alemães; no entanto, uma parte substancial destes passageiros foram soldados coloniais brancos. Dada a ausência de embarcações militares específicas para o efeito, estes tiveram — a par das suas armas, da sua munição e de todo o seu equipamento — de ser transportados em navios civis. As linhas de navegação constituíam de facto as linhas de abastecimento e de ligação entre a Alemanha e os territórios ultramarinos e, desse modo, desempenhavam um papel muito importante no funcionamento do império colonial. O estado atual da investigação acerca de Baakenhafen permite afirmar com clareza que, durante a guerra colonial, a maioria dos transportes de soldados teve como destino o território da atual Namíbia.

Entre agosto de 1900 e maio de 1907, houve pelo menos 86 operações de transporte de cariz militar que envolveram as instalações portuárias de Baakenhafen. Um total de 73 dessas operações destinaram-se a transportar tropas e material relacionados com a guerra colonial na Namíbia: entre janeiro de 1904 e maio de 1907 regista-se a partida de Petersenkai (ou chegada) de 23 145 militares e 11 065 cavalos. Estes números correspondem a mais de 90% dos soldados empregues na guerra colonial. Durante os conflitos decorrentes da presença colonial na China e no período de ocupação que se seguiu foram efetuadas ao todo dez viagens de transporte — entre agosto de 1900 e novembro de 1903 — que se serviram das instalações de Baakenhafen. No início de 1906 chegaram a Petersenkai dois transportes de regresso de soldados da infantaria naval, provenientes da África Oriental Alemã, onde haviam participado em ações militares da guerra colonial. Em dezembro de 1902, um navio que transportava cerca de 125 soldados da Marinha partiu de Petersenkai para participar num bloqueio naval ao largo da costa da Venezuela.

O grande público da cidade de Hamburgo dedicava bastante atenção a estas operações de transporte, que constituíam o que atualmente se classificaria de “verdadeiros eventos” na vida do porto. Pode dizer-se que o “auge” desses eventos foi atingido aquando dos transportes realizados no contexto da guerra colonial que grassava no território da atual Namíbia, e que veio a resultar no genocídio dos Ovaherero e dos Nama. Nas cerimónias oficiais de despedida dos soldados coloniais contou-se sempre com a presença dos representantes do Senado de Hamburgo, que em nome dessa instituição presenteavam os militares que estavam de partida com as chamadas “dádivas de amor”. Tais presentes consistiam geralmente em postais e pequenas bolsas para charutos, eram encomendados pelo Senado e fabricados com o propósito de servir de lembrança para os soldados.

Além disso, havia bandas militares que ali se deslocavam para interpretarem canções patrióticas, ascendendo por vezes aos o número de espetadores que vinham até Baakenhafen para aclamar entusiasticamente os soldados. Esses mesmos soldados coloniais estiveram envolvidos na prática de crimes de guerra e de violações dos direitos humanos e cometeram o primeiro genocídio do século XX. 

Foi em Petersenkai que o próprio Lothar von Trotha, o comandante das tropas no Sudoeste Africano Alemão, embarcou rumo à guerra colonial; e também aí, um ano e pouco depois de ter ordenado o genocídio, foi Von Trotha, em nome do Senado, saudado à chegada com uma celebração, a qual contou com a presença pessoal de Johann H. Burchard, o primeiro-burgomestre da cidade. No tocante ao papel desempenhado por Hamburgo na guerra colonial ocorrida no território da atual Namíbia, bem como no genocídio perpetrado contra os povos Ovaherero e Nama, Petersenkai e toda a zona de Baakenhafen constituem um local de relevância central, em que se torna evidente o apoio prestado pelas autoridades da cidade.

Petersenkai na atual HafenCity

No início do século XX, surge toda uma cultura de celebração dos transportes de tropas coloniais realizados a partir de Hamburgo. Através dessas cerimónias visa-se encenar o papel que a Alemanha deveria assumir como potência colonial, e bem assim o poder militar necessário para esse efeito. As celebrações legitimaram e normalizaram a violência com que se impunha esse poder, tal como o racismo que lhe estava subjacente, inserindo-os num quadro discursivo de âmbito nacional e celebrando, através da política e da imprensa, o papel de Hamburgo enquanto metrópole comercial e portuária da economia colonial.

A HafenCity — juntamente com Baakenhafen, que é parte integrante desta — é hoje para Hamburgo um lugar onde a cidade concretiza a sua própria noção de metrópole europeia do século XXI, onde essa imagem é encenada, onde afirma ser importante “redefinir um novo pedaço de cidade [...] em termos de identidade e de emoção” (vd. HafenCity Hamburg GmbH, 2016, pág. 10). Deste modo, Baakenhafen serve, uma vez mais, como um local de encenação.

A última grande fase de construção da HafenCity. Foto: © Nicole Benewaah Gehle

Decorre atualmente em Baakenhafen a última grande fase de construção da HafenCity, no âmbito da qual se redesenha a área a partir do zero. Estão aí a ser construídos edifícios residenciais e de escritórios de vários andares, e no extremo oriental irá ser criada a «Amerigo Vespucci Platz», a maior praça pública das redondezas. Assim, também em Baakenhafen se prossegue, de modo acrítico, uma prática nada imparcial adotada em toda a HafenCity, em resultado da qual se tem atribuído a ruas e praças públicas os nomes de supostos “descobridores europeus”. Esta narrativa histórica reafirma e dá continuidade a uma mundivisão colonial que implica que os homens europeus brancos terão supostamente realizado a “descoberta” do mundo não-europeu; além do mais, nessa conceção do mundo não há espaço para relatos sobre a violência e o racismo da era colonial, nem tão-pouco sobre os efeitos destes, que continuam a fazer-se sentir até hoje. Coloca-se, pois, a questão de saber quais são afinal as pessoas cujas “identidades e emoções” devem ser “redefinidas” em Baakenhafen. E tanto mais se, daqui em diante, continuar a ser apresentado tão-só um entendimento afirmativo e romantizado da expansão europeia, uma visão que exclua abordagens críticas do racismo ou as perspetivas BIPoC [sigla de Black, indigenous and people of color, ou seja, “negros, indígenas e pessoas de cor”].

Fevereiro 2021

Tradução: Paulo Rêgo

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bIBLIOGRAFIA

Lars Amenda: “Tor zur Welt“. Die Hafenstadt Hamburg in Vorstellungen und Selbstdarstellung 1890–1970 [“Porta para o Mundo“. A cidade portuária de Hamburgo, como é apresentada e como se vê a si mesma. 1890–1970], in: “Tor zur Welt“. Hamburg-Bilder und Hamburg-Werbung im 20. Jahrhundert [“Porta para o Mundo”. Imagens da cidade e publicidade a Hamburgo no século XX], org. de Lars Amenda e Sonja Grünen, Dölling & Galitz, Hamburgo/Munique, 2008, págs. 8–101

HafenCity Hamburg GmbH: Themen. Quartiere. Projekte [Temas, bairros, projetos], Hamburgo, 2016

Jan Kawlath: Der Hamburger Hafen und der deutsche Kolonialkrieg in Namibia. Die Inszenierung kolonialer Gewalt im Baakenhafen 1904–1907 [O porto de Hamburgo e a guerra colonial na Namíbia. A encenação do poder colonial em Baakenhafen de 1904 a 1907], Allitera Verlag, Munique, 2019

Gert Kähler e Sandra Schürmann: Spuren der Geschichte. Hamburg, sein Hafen und die Hafencity [Vestígios da história. Hamburgo, o seu porto e a Hafencity], in: Arbeitshefte zur Hafencity [Cadernos de trabalho relativos à Hafencity], org. de HafenCity Hamburg GmbH, Hamburgo, 2010

Tania Mancheno: All change, please! Über die Un-/Möglichkeiten der Dekolonialisierung des öffentlichen Raumes in Hamburg [“Mudem todos, por favor!“ Das (im-)possibilidades da descolonialização do espaço público em Hamburgo], in: ZAG. Antirassistische Zeitschrift [ZAG. Revista Antirracista], nº 70, Berlim, 2015, págs. 25–7

Heiko Möhle (org.): Branntwein, Bibeln und Bananen. Der deutsche Kolonialismus in Afrika. Eine Spurensuche [Aguardente, bíblias e bananas. O colonialismo alemão em África. Em busca de vestígios], Assoziation A, Hamburgo/Berlim, 2011 

Última edição em: 12/11/2024 03:25:14

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