Francisco Mota

© João Ferrand

Francisco Mota
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Tê-lo ali rodeado por três crianças indígenas com uma atitude muito submissa consiste numa representação muito pobre daquilo que foi a vida de Vieira.

ENTREVISTA: Miriam Thaler 

Enquanto centro cultural, o projeto Brotéria abriu muito recentemente – em janeiro de 2020 – no centro da cidade de Lisboa. Quais são os seus planos para esse projeto agora e nos anos vindouros? O que gostaria que este lugar fosse? 

 

Temos vindo a falar da Brotéria como centro cultural cuja missão principal é a de ser um lugar onde a fé cristã se pode encontrar com as nossas culturas urbanas contemporâneas. Temos uma identidade muito clara enquanto centro cultural católico, dirigido e detido por Jesuítas e integrado numa rede muito vasta de escolas, centros culturais, centros de arte, paróquias, centros sociais, centros de refugiados, etc.

Assim, em tudo o que fazemos está subjacente uma certa tensão entre a nossa identidade enquanto padres católicos, enquanto instituição dirigida por Jesuítas, e aquilo que vemos na rua, as preocupações quotidianas de pessoas que vivem em lugares como Lisboa ou outras cidades. As preocupações de pessoas que se esforçam na sua vida profissional, na sua vida cultural e na sua vida familiar. Para nós, é muito claro que estar constantemente exposto a um fluxo de comunicação dá que pensar.

A estátua do padre António Vieira foi erguida em 2017 pela Santa Casa da Misericórdia e pela Câmara Municipal de Lisboa no largo situado mesmo em frente às instalações da Brotéria. Quer isso dizer que existe ligação entre a Brotéria e a Santa Casa?

 

Eu referir-me-ia a essa ligação como uma parceria privilegiada. A Santa Casa é dona do edifício onde nos encontramos e o parceiro principal de todo este projeto. Damo-nos bem com muitos dos seus colaboradores, eles dão-se bem com muitos dos nossos e é por isso que há uma tendência para desenvolvermos trabalho em conjunto.

Passemos ao debate a respeito da estátua do padre António Vieira. Em primeiro lugar, interessa-me saber qual a sua posição a respeito do padre António Vieira. Como é que o vê, como ficou a saber sobre Vieira?

 

Ficaria surpreendido se me dissesse que falara com alguém em Portugal que tivesse concluído a formação secundária e afirmasse desconhecer quem era Vieira. Sou um grande admirador dos seus escritos e da sua biografia. É claro que o facto de ele ser jesuíta ajuda. Tenho dificuldade em ter uma outra visão sobre a sua vida e obra que não seja positiva. E esse é um dos aspetos que tenho achado mais intrigantes em relação ao que tem acontecido nestes últimos meses em particular. Enfim, não há dúvida que sou um grande admirador.

Discorda de que se refiram a ele, por exemplo, como um "esclavagista seletivo"?

 

Não. Concordo inteiramente com essa expressão. Mas acrescentaria ainda que há que ver que ele foi um esclavagista seletivo do século XVII. Se se acrescentar isso, então acho que se pode perfeitamente usar essa expressão. Teremos sempre de lembrar-nos do quanto Vieira era contra a escravatura dos indígenas ameríndios e de algumas outras pessoas. Penso que qualquer leitura simplista desta questão será sempre insuficiente. Poder-se-á argumentar que provavelmente ele fez uma escolha política, que terá dito: "Bem, vou salvar aqueles que me são mais próximos. Quanto aos outros... Enfim, há sempre alguém que tem de ser sacrificado."

Mas acima de tudo, penso que há qualquer coisa de profundamente afetuoso no modo como Vieira olhava para os indígenas das Américas. Portanto, pode dizer-se que ele se aproximou tanto deles que foi capaz de ver para além do seu tempo: conseguiu constatar em relação aos indígenas ameríndios o que os outros povos ainda não haviam visto; mas não em relação aos africanos, já que Vieira não estava próximo deles do mesmo modo. Diga-se o que se disser, penso que há que estar atento à complexidade de toda a história, pois ele parece estar constantemente a fazer uma coisa certa e a outra errada, uma coisa certa e a outra errada. Constato isso a toda a hora ao longo da sua vida. Também acho que será justo afirmar que a maioria dos seus contemporâneos não estava a fazer uma coisa certa e a outra errada: estavam antes a fazer uma coisa errada, a outra errada, e mais outra e ainda outra errada, uma certa, outra errada, outra errada… Por isso, acho que há qualquer coisa de fascinantemente complexo a respeito da sua vida e dos tempos em que viveu. 

Mas acha mesmo que ele foi além do seu tempo?

 

Penso que Vieira vai um pouco além do seu tempo na combatividade que coloca na sua pregação e nas suas cartas. Ele é implacável na defesa dos indígenas, implacável. Não vejo muitas pessoas que o tenham feito. Dir-me-á, com razão, que já antes havia o exemplo do , o padre dominicano Bartolomeu de las Casas.De las Casas viveu no século anterior ao de Vieira e também defendeu os indígenas ameríndios nos seus escritos. Mas De las Casas nunca conseguiu ter o impacto junto do rei que Vieira veio a ter. Seja como for, acredito muito pouco na genialidade ou na inovação, em termos absolutos. Como tal, não pretendo de forma alguma afirmar que Vieira foi o único homem interessante do seu tempo, nem que foi o primeiro a fazer o que fez, nem tão-pouco que foi impoluto em tudo o que fez.

Uma coisa é tentar compreender um homem, tentar perceber se, do nosso ponto de vista, ele era bom, mau ou apenas complexo. Outra coisa completamente diferente é a questão de como o representamos, daquilo que pretendemos obter com este tipo de representação? Penso que esse foi também um dos temas que o debate abordou.

 

Acho que a parte inteligente do debate era sobre isso. E essa parte do debate é muito útil e muito necessária. É imprescindível que tenhamos essa discussão. Como representar uma figura tão importante como ele continua a ser, prestando a devida homenagem ao que de importante ele nos trouxe, ao que nos fez avançar, mas sem branquear demasiado o que ali há de mais turvo e confuso?

A seu ver, qual é exatamente o problema daquela estátua, tal como ela é?

 

Do meu ponto de vista, há algumas razões para aquela estátua em particular ter sido vandalizada. A primeira, desde logo, é porque fazê-lo estava "na moda", uma vez que isso vinha acontecendo por todo o mundo. A segunda tem a ver com a sua localização geográfica. Esta estátua foi colocada no centro da cidade. Existe um mural dedicado ao padre António Vieira em Lisboa, perto do castelo, que tem uma frase sua, mas aí nada aconteceu. Seria até muito mais fácil escrever nessa superfície. Penso, por isso, que a geografia desempenhou um papel bastante decisivo. E há ainda uma terceira razão que considero importante: tê-lo ali rodeado por três crianças indígenas com uma atitude muito submissa consiste numa representação muito pobre daquilo que foi a vida de Vieira. Não faz sentido. 

Além disso, também não faz sentido que precisamente no lugar onde ele foi o pregador real [na capela da igreja de São Roque], ele não tenha sido representado como tal, mas antes como defensor dos indígenas. Haverá provavelmente ainda outras razões, mas estas três são as que me ocorrem. Boa parte da confusão gerou-se em resultado de uma representação infeliz, num lugar que é central e numa época em que os ânimos estavam exaltados.

É interessante mencionar o mural, porque de facto este foi citado pelo grupo Descolonizando como exemplo de uma homenagem bem concebida ao padre António Vieira. Não acha que teria sido muito mais aceitável representá-lo enquanto escritor e talvez também como pregador, em vez de tentar heroicizar um homem que, no seu tempo, fez certamente coisas admiráveis, mas que não deixou de ser parte integrante de um sistema colonial opressor?

 

Penso que a sua intuição está certíssima. Mas é intrigante que uma pessoa que se mostrou contrária à ação da Inquisição seja agora vista como alguém que terá sido um defensor da opressão e de tudo o que houve de condenável no século XVII.

Certo é que nunca ouvi ninguém proferir qualquer pretensão que devesse ser levada a sério a tentar defender a santidade de Vieira; ele era um incómodo, seria provavelmente insuportável e, para quem tivesse tido de viver ou trabalhar com ele, deve ter sido quase impossível tolerá-lo. Há agora um movimento em Portugal que tenta apelar à beatificação do padre António Vieira. Não contem comigo para isso. Ele usou pessoas, usou instituições, usou países. Muito do que fez foi por motivos táticos. Ele é, na verdade, um dos melhores exemplos que eu conheço da Realpolitik do século XVII. Reconheço que é um homem admirável, disso não tenho dúvidas. É uma figura absolutamente desafiadora e inspiradora. Mas achar que a sua vida é de alguma forma pura a ponto de ser reconhecida como – usando aqui a linguagem confessional… – "um trajeto imaculado rumo à presença de Deus" ?! Não vejo as coisas assim, de todo.

Acha que faz sentido haver uma estátua de António Vieira? Afinal de contas, a sua obra está publicada em livros, é ensinada nas escolas. Seria necessária uma estátua?

 

Penso que faz sentido ter uma boa estátua. Não creio que deva ser uma representação da pessoa, neste caso não deverá ser esse o caminho a seguir. A forma como a estátua está neste momento… É um tipo de representação reminiscente do Estado Novo e não faz qualquer sentido. Se se pretender ter uma estátua de Vieira adequada, então convide-se um artista contemporâneo que utilize uma linguagem contemporânea, para fazer qualquer coisa interessante sobre Vieira. Pode-se ter um monumento que não seja uma estátua, que preste mais uma homenagem à sua escrita do que propriamente à pessoa. Essa teria sido uma possibilidade, por exemplo. Creio que a minha dificuldade em responder à sua pergunta é porque quase tudo o que possamos imaginar teria sido melhor do que aquilo que temos.

É intenção sua organizar um evento sobre a representação de António Vieira. Como imagina esse evento, em concreto? Quem gostaria de convidar para o debate?

 

Não queremos fazer as coisas de cabeça quente. Penso que precisamos de encontrar boas pessoas, as pessoas certas; mas também precisamos de encontrar o momento certo. E não creio que, por enquanto, seja o momento adequado. Não precisamos de distrações do que estamos a viver neste momento. Voltaremos a Vieira na altura devida. Penso que a forma certa de impulsionar isso seria ter as leituras dos sermões, haver peças de teatro e textos curtos escritos sobre Vieira [1]. A única possibilidade de haver uma discussão verdadeiramente relevante é se ajudarmos as pessoas a saberem quem Vieira realmente foi. A sua obra escrita é extensa. Muitas das pessoas que falaram do padre António Vieira, tanto para o defender como para o acusar, terão ido à Internet e escrito "Vieira" e "escravatura". A seguir, terão provavelmente clicado em dois ou três links e foi isso que leram. Porém, antes de se poder ter uma discussão, as pessoas têm de conhecer o que estão a discutir. A melhor maneira de o fazer é proporcionar-lhes qualquer coisa que tenha sido encenada, de um modo artístico.

Acha que com um tal programa poderia atrair precisamente aqueles que estão a criticar a estátua e também, por exemplo, pessoas de coletivos antirracistas que tanto se envolveram nos debates recentes?

 

Espero que sim. A minha ideia é que se comece numa escala mais pequena; é sempre assim que se começa, mas se a persistência for suficiente, o efeito cumulativo acabará por trazer resultados. Não estamos à espera que seja fácil. Mas também sei que se o primeiro passo que der for organizar debates, discutir com as pessoas, então essas posições tornar-se-ão definitivas. Só que essa não é a nossa maneira de fazer as coisas. Vamos primeiro construir uma base para a conversa; depois disso, discutiremos o assunto. Que outra forma existe numa sociedade para encontrar pontos em comum sobre qualquer assunto que seja complexo?

Tradução: Paulo Rêgo

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Notas

[1] Estes planos acabaram por resultar em duas palestras académicas que tiveram lugar no verão de 2021: “O antirracismo de Vieira”, José Eduardo Franco (June 22, 2021; https://www.broteria.org/pt/programa?antirracismo-de-vieira) e “Padre António Vieira e depois”, Pedro Calafate. A palestra fez parte de “Memória e pós-colonialismo - Curso de Verão” (July 5-10, 2021; https://broteria.org/pt/programa?id=144). 

A entrevista foi revista e adaptada ligeiramente em junho 2022. 

Miriam Thaler conduziu esta entrevista em 20/10/2020 no contexto da sua pesquisa para um relatório sobre uma estátua em homenagem de padre António Vieira, erigida em 2017 na cidade de Lisboa. Em 2020, alguns dias após as manifestações do movimento Black Lives Matter no centro da capital portuguesa, esse monumento foi parcialmente pintado com tinta vermelha e a palavra "descoloniza". A notícia pode ser lida aqui.